Um escritor que vai para Dublin passar um tempo para escrever um livro ambientado na cidade provavelmente vai falar de James Joyce em algum momento da narrativa, certo? Errado. Nem usar o estilo Ulysses de ser? Talvez. Mas a referência pode não ser assim tão clara, e aí você passa um livro inteiro sobre Dublin sem nem pensar em Orlando Bloom, Molly, Joyce e companhia. Melhor fugir do clichê. Quem esperaria um pouquinho da grande obra joyceana em Digam a Satã que o recado foi entendido, de Daniel Pellizzari, pode se decepcionar um pouco, mas apenas nesse aspecto. Só porque se passa em Dublin e as personagens não sabem muito bem o que fazer com a vida e as coisas simplesmente “acontecem” com elas, não quer dizer que Joyce deveria estar ali aparecendo nas entrelinhas de cada página – na verdade ele aparece, quando o protagonista fala de “turistas pretensiosos”. Esse parágrafo só está aqui para dizer que não pensei em Joyce em momento algum da leitura, e isso foi bom.
Digam a Satã… faz parte da coleção Amores expressos, essa que leva escritores para alguma cidade bacana do mundo para que escrevam uma história de amor que se passe nela. Simples assim. Mas o amor não está tão evidente no livro de Pellizzari, e por vários momentos me perguntei quando ele surgiria. Contudo, ele está sim, só que de um jeito diferente.
O protagonista do livro é Magnus Factor que, durante uma viagem para Dublin, decide não voltar mais de lá. Conquistado pelo melhor milk shake do mundo e por uma garçonete eslovena, Stefanija, ele finca suas raízes na capital irlandesa e cria um negócio, no mínimo, inusitado: uma agência de turismo especializada em tours por locais assombrados da cidade. As histórias assustadoras e os fatos que relatam são criados por ele e seu sócio, Bartholomew O’Shaugnessy (ou Barry, para encurtar), um irlandês ruivo e ogro que fala mais palavrão em uma frase que a torcida inteira do Corinthians xingando o juiz. Além dele e de Barry, a “empresa” ainda conta com os serviços de Zbigniew e Seewosagur, natural das Ilhas Maurício. Abandonado por Stefanija, Magnus acaba conhecendo Laura, uma moça bem mais jovem que ele e que o apresenta a um grupo terrorista praticante de pequenos atos revolucionários contra a própria cidade – como invadir uma catedral e cortar a cabeça das imagens de santos ou algo do tipo. A história ainda fala de Patricia, uma adolescente que, prestes a completar treze anos de idade, decide que quer se matar numa montanha, mas no meio do caminho encontra uma seita estranha que quer fazer reviver o deus serpente – ou algo do tipo.
Em cada capítulo do livro Pellizzari dá voz a uma dessas personagens, e essa é a característica mais importante do romance. Creio que ele soube dar uma personalidade marcante para essas pessoas, construí-las de modo a convencer o leitor de que sim, elas são críveis e totalmente diferentes umas das outras, que enxergam a vida e o mundo de maneiras particulares. O que liga elas é esse desconhecimento de para onde irão, o que acontecerá com elas a seguir. Nenhuma delas parece saber exatamente o que estão fazendo no mundo ou o que querem dele – com exceção de Patricia, até ela ser arrebatada pelo chefe da seita e mudar totalmente de ideia. São apenas pessoas que se deixam levar por aquilo que aparece na sua frente e pelas crenças que nutrem durante certo tempo.
Magnus é um protagonista interessante, porém não é a personagem que mais me cativou no romance. Esse papel ficou com Barry e Patricia, talvez porque suas histórias pareçam ser as menos “certinhas”. Quero dizer, são os momentos do livro em que você tem certeza de que eles não sabem o que fazer ou o que vão encontrar a seguir. A narrativa de Barry é, em si, bem peculiar. É apenas um jorro de pensamentos e ideias ditas de forma bem grossa, direta, e tudo o que acontece no momento que ele narra é carregado de um tom cômico que faz desse capítulo o mais divertido de todos. Mais ou menos o mesmo acontece com a história de Patricia, embora a vida dela tenha uma carga mais melancólica, e ela pareça ser uma personagem mais complexa do que Barry – reflete mais do que ele, digamos. Ela é que é a grande surpresa da narrativa, que obviamente não vou detalhar para não estragar a sensação de descobrir quem ela realmente é e o que há por trás de sua história.
O legal de Digam a Satã que o recado foi entendido é isso: ter contato com personagens tão diferentes e deixar se levar por elas a cada capítulo. É claro que tudo tem uma razão de ser e nada acontece por acaso, e no final Pellizzari revela ao leitor como cada personagem se liga a outra – não só por serem idiotas extraordinários, como o vô de Patricia diz que ela pode se transformar no futuro. O autor justifica a presença delas neste livro de forma bem acertada, sem deixar uma ponta solta nas tramas de cada um. E foi aí que eu enxerguei a tal “expressão do amor” no romance: um amor pela vida, vamos assim dizer. E é bom estar vivo.