Sistema nervoso, de Lina Meruane (Todavia, tradução de Sérgio Molina), pode ser uma boa leitura para se fazer nessa quarentena. Não, não tem nada a ver com coronavírus e isolamento social. Mas tem a ver com doenças, o que pode ser meio complicado para os leitores hipocondríacos. Ou, na verdade, pode ser um prato cheio para os hipocondríacos.
Ela é uma astrônoma em crise com seu doutorado. É assim que Meruane se refere a suas personagens: Ela, a protagonista; Ele, o marido; Pai, Mãe, Mãe biológica, Primogênito, Gêmeos, Amiga… Ela estuda buracos negros, o buraco negro que deve existir no centro da Via Láctea, mas há anos está estagnada em sua tese, não consegue escrever. Dá aulas de física em uma escola e coloca parte da culpa do seu fracasso acadêmico nessa atividade que paga as suas contas. Por isso, numa noite, deseja ficar doente para poder tirar uma licença e se dedicar apenas à tese. E ela fica.
Ela é filha de dois médicos, o Pai e a Mãe, que na verdade é sua madrasta. A Mãe biológica morreu de complicações durante o seu parto, deixando para trás o Primogênito, o marido e uma filha recém-nascida. É como se sua vida vivesse envolta em problemas médicos: cânceres, tumores, problemas psicológicos. Ao adoecer – e fingir para o Pai que é, enfim, doutora –, Ela destrincha toda a história da sua família elencando as doenças que os acometeram. As febres infantis, as mortes que levaram os parentes, o método absurdo da Mãe de fazer todos os filhos reforçarem seus anticorpos.
Lina Meruane é peruana e não fixa sua história em um tempo. Há o país do presente, provavelmente os EUA, onde Ela mora com Ele. E há o país do passado, o Chile, marcado até hoje por uma ditadura que foi tão violenta quanto as doenças que Lina apresenta. A protagonista vai e volta entre memórias e o presente, e lentamente o leitor se embrenha em todos os traumas que envolvem sua família.
Violência, aliás, é o que define Sistema nervoso. Tudo na vida é violência: a explosão que criou o universo, a capacidade destrutiva de um buraco negro, o câncer que te devora lentamente por dentro, a culpa de se sentir responsável pela morte de alguém desde a infância. A violência da ditadura chilena que ameaçou amigos dos pais e seus familiares, a promessa de violência doméstica que Ela aguarda ansiosa, não sabendo se prefere ser ignorada ou agredida. A violência sexual que revela, em certo momento, ter sofrido. Não é uma leitura leve, é um lembrete de que podemos sofrer a cada momento.
Além das alusões à ditadura, outro tema que aparece nas entrelinhas de Sistema nervoso é a questão da imigração. No país do presente, Ela é uma imigrante e seu marido está envolvido numa investigação de ossadas encontradas em uma vala que não é o que parece ser. Então, sim, a violência está tão presente no país do presente quanto no país do passado. Ela faz parte da vida da protagonista.
É interessante notar também como Lina Meruane nomeia apenas as doenças e as coisas cósmicas. Uma comparação entre o que é micro – as células, os vírus, as bactérias – com o que é macro – estrelas, galáxias, planetas. São as únicas coisas a que Ela se refere diretamente, os assuntos que consegue abordar com segurança. Enquanto todo o resto recebe apelidos, como se tivesse medo de dar nome às pessoas e aos lugares onde viveu.
Sistema nervoso é um livro que me surpreendeu bastante pela carga dramática que carrega em uma narrativa tão direta. Já esperava bastante desde a capa, que me chamou a atenção por fazer esse paralelo entre o que há dentro do nosso corpo e o que há no universo – duas coisas que muito me interessam. Mas, no fundo, não é um livro sobre doenças ou sobre o cosmos. É um livro sobre a violência que explode dentro de nós.
“Não há bolo nem velinhas nem tragos de sal. Não há oceano a atravessar, apenas um líquido amniótico amnésico assassino. Aquela placenta como tóxica medusa. Aquele cordão teso rasgando a mãe por dentro enquanto sua cabeça empurra alcançando a luz de uma lâmpada branca que a cega e o barulho a que vai se juntar com seu choro recém-nascido. Ser o corpo estranho que dilacera e desaloja outro corpo que agora não para de sangrar. Fazer anos nessa cripta cheia de roncos desumanos é a maldição da mãe morta que Ela nunca devia ter invocado. Não devia tê-la despertado no além.”
Ficou com vontade de ler? Encontre aqui Sistema nervoso, de Lina Meruane.
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